quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

2014 .-. Bom Ano .-. Muitas Leituras

 

            Os livros

Os livros. A sua cálida, 
terna, serena pele. Amorosa 
companhia. Dispostos sempre 
a partilhar o sol 
das suas águas. Tão dóceis, 
tão calados, tão leais. 
Tão luminosos na sua 
branca e vegetal e cerrada 
melancolia. Amados 
como nenhuns outros companheiros 
da alma. Tão musicais 
no fluvial e transbordante 
ardor de cada dia.

(Num exemplar das Geórgicas)

            in Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência

 


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              Sonho

Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.

          in Agostinho da Silva, Poemas

 

         




             Ver claro

Toda a poesia é luminosa, até 
a mais obscura. 
O leitor é que tem às vezes, 
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si. 
E o nevoeiro nunca deixa ver claro. 
Se regressar 
outra vez e outra vez 
e outra vez 
a essas sílabas acesas 
ficará cego de tanta claridade. 
Abençoado seja se lá chegar.

    in Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede


         As poucas palavras

Foi um dia, e outro dia, e outro ainda. 
Só isso: o céu azul, a sombra lisa, 
o livro aberto. 
E algumas palavras. Poucas, 
ditas como por acaso. 
Eram contudo palavras de amor. 
Não propriamente ditas, 
antes adivinhadas. Ou só pressentidas. 
Como folhas verdes de passagem. 
Um verde, digamos, brilhante, 
de laranjeiras. 
Foi como se de repente chovesse: 
as folhas, quero dizer, as palavras 
brilharam. Não que fossem ditas, 
mas eram de amor, embora só adivinhadas. 
Por isso brilhavam. Como folhas 
molhadas.

               in Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede